“O racismo é uma coisa branca. É o fardo das pessoas brancas”, diz Nadia Yala Kisukidi
Por Mariana Rosetti, em Elle
Foto: Rodrigo Trevisan Dias
Em conversa no Espaço Femininos Plurais, a filósofa francesa fala sobre dissociação, o poder do maravilhamento na literatura e por que combater o racismo é responsabilidade de quem o criou.
Enquanto assistia a uma live no Instagram da professora, filósofa, escritora e ativista do movimento negro Djamila Ribeiro, a também filósofa e escritora francesa Nadia Yala Kisukidi teve sua atenção capturada pelo comentário de uma mulher negra: “Estou tão cansada do racismo e de todo o fardo que meu corpo tem que carregar, que quero me livrar dele. Só quero viver como um espírito”, ela dizia.
Aquele sentir não era metáfora, sabia Yala, mas o desejo de dissociação — não coincidentemente, a palavra é título do seu primeiro romance. “O que ela disse é exatamente a experiência de dissociação: quando você não aguenta o que seu corpo tem que carregar socialmente”, explica a autora. O episódio aconteceu em 2022.
A identificação com o relato daquela mulher desconhecida não era apenas intelectual — vinha também de sua própria trajetória. Nascida em Bruxelas em 1978, filha de pai congolês e mãe franco-italiana, Yala é professora associada de filosofia na University of Paris 8 e especialista em filosofia francesa e africana. Em entrevista à ELLE, em solo brasileiro, ela contou sobre suas tentativas individuais de dissociação, o poder da literatura e por que o racismo é um problema das pessoas brancas.
A dissociação como sobrevivência
Lançado no Brasil em 2024 pela Bazar do Tempo, A dissociação narra a história de uma menina órfã que vive com a avó na periferia da cidade industrial de Villeneuve d’Ascq, no norte da França. A menina tem uma habilidade incomum: consegue separar a mente do corpo.
Antes de escrever o livro, Yala tentou fazer o mesmo que sua personagem: “Se escolhi ser filósofa, é para me livrar do meu corpo”, confessa. A escolha estava enraizada na promessa da filosofia de viver através da razão, sem preconceitos ou vieses. “Eu estava realmente chateada com este mundo, estava insatisfeita como jovem, então escolhi a filosofia para me livrar do corpo. Mas é claro, é impossível se livrar dele.”
A autora evoca Frantz Fanon na obra Pele negra, máscaras brancas para explicar por que a experiência corporal pode se tornar inóspita, sobretudo quando atravessada por estruturas como o racismo, o sexismo ou a colonização: “Através do racismo, a experiência que você tem é de que seu corpo não é sua propriedade. Você não é o sujeito dele porque ele pertence a outra pessoa. Ele é apenas raça.”
Yala aponta dois caminhos diante do cenário: o primeiro é sair de si, o segundo é reivindicar sua existência física. Na literatura, recorre à primeira opção: “Então você diz a si mesmo: ‘Este mundo não é meu. Então, vou deixar este corpo neste plano e viverei toda a minha vida como um espírito’”, fala a autora, sobre o sentimento da protagonista. É um romance de fantasmas, de pessoas que sonham viver em um mundo sem luz — no escuro não há raça ou cores de pele.
O racismo é branco
A filósofa francesa reafirma aquilo que a intelectual e ativista negra Lélia Gonzalez defendia: “O racismo não é problema meu, é problema seu”, se referindo às pessoas brancas. “É complicado para mim falar sobre racismo, porque me lembra de todos os momentos humilhantes em que tive que experimentar quando era pequena. E não posso aceitar isso. Também me lembro de todos aqueles momentos em que desisti e também não posso aceitar isso”, define Yala.
Para a filósofa, mulheres negras tiveram que se defender contra algo que não criaram: “O racismo é uma coisa branca. É o fardo das pessoas brancas.” Sendo assim, “todas as coisas que tento fazer é não ser engolida por essa vertigem racial. Conhecemos a letra, conhecemos o roteiro, conhecemos a música. E estou farta de cantar a mesma música.”
Vivendo nos Estados Unidos durante a recente campanha presidencial, Yala compreendeu algo importante: “Algumas pessoas brancas realmente entenderam o que racismo significa. Elas têm o privilégio, a obrigação de lutar pelos outros. É sobre não aceitar o que está sendo fantasiado como sua raça”.
A luta contra o racismo não é sobre ser aliado dos pobres ou dar oportunidades: “É sobre quebrar o sistema e isso tem que ser feito pelas pessoas que são privilegiadas por ele. Caso contrário, são apenas palavras ou caridade”.
Linguagens múltiplas, identidades híbridas
A escolha de Yala pelo maravilhamento e pela hibridez de formas narrativas não é apenas estética — é política e autobiográfica. “Não sou apenas africana, não sou apenas congolesa, também sou europeia e francesa”, afirma. Essa multiplicidade se reflete em sua escrita, que reúne tradições orais africanas e formas marginalizadas da literatura europeia.
Para a autora, existem duas Europas: a colonial, “que odiamos, aquela que não se pode salvar, e outra que foi alvo de perseguição”. Yala se refere às heresias, às pessoas perseguidas pela Igreja Católica, às diferentes formas de conhecer e acreditar que foram sistematicamente apagadas. “A Europa também é um continente complexo. Quando vejo isso, também vejo tradições fortes que foram apagadas, tradições menos racionais, mais mágicas”, explica.
O romance foi bem recebido na França, apesar do estranhamento. O naturalismo e o realismo dominam a expressão literária francesa, mas Yala precisava do maravilhamento, do mágico e do fantástico para falar de racismo, já que “não entendo como você pode descrever o racismo racionalmente, porque não é racional”.
Ela ilustra com uma experiência pessoal: aos 12 anos, comendo uma banana, recebeu um insulto racista. “Há algo que está com defeito no cérebro do outro. Não posso entender que alguém me veja como um macaco. É por isso que não posso usar a razão, o realismo, o naturalismo para falar sobre essa bagunça do racismo. Preciso do maravilhamento.”
Yala diz que o mundo moldado pela raça é um pesadelo mágico. “Eu sei exatamente o que significa viver em um mundo que não é moldado pelo racismo. Sei exatamente. Não é uma utopia. Sei porque não sou racista. E nunca serei. Então não tenho que inventar outra palavra”, pontua.
França, África e Brasil
A conversa com a reportagem aconteceu na biblioteca que leva o nome de Toni Morrison – editora, escritora primeira e única mulher negra a receber Prêmio Nobel de Literatura – do Espaço Feminismos Plurais (EFP), instituto presidido por Djamila Ribeiro que oferece formação intelectual e profissional a mulheres negras, além de atendimento psicológico, suporte jurídico e odontológico.
Naquela tarde, Nadia Yala Kisukidise prepara para um bate-papo com leitoras do projeto Movimento Autoral, destinado a visibilizar obras escritas por autoras. O projeto une escritoras e leitoras por meio de um clube de livro e encontros presenciais como o daquela noite. Coordenado pela professora e escritora Maria Carolina Casati – que também mediou a conversa com Yala – e apoiado pelo consulado da França desde o segundo semestre deste ano, o clube escolheu A dissociação como obra do mês.
Embora seja a primeira vez de Yala no espaço, ela e Djamila já se conhecem de longa data: escreveram juntas o livro Diálogos transatlânticos, publicado na França pela Editions Anacaona, em 2020. Djamila acompanhou a conversa remotamente, de Massachusetts, onde está temporariamente.
O encontro foi realizado um dia antes da Marcha das Mulheres Negras, em Brasília, dez anos após a primeira edição. Nesta, milhares de mulheres ocuparam as ruas da capital federal para pedir reparação histórica e bem viver – conceito que vai além do acesso a direitos básicos e abrange uma vida digna, livre de violências e com respeito à ancestralidade.
Organizada no Dia Internacional pela Eliminação da Violência contra a Mulher, 25 de novembro, a marcha reuniu apoiadoras de todas as regiões do país e do exterior, organizadas em coletivos e movimentos sociais que, assim como o espaço onde Yala falou naquela noite, constroem redes de apoio e resistência para enfrentar o racismo.
Em outra não coincidência, ao fim do bate-papo, uma mulher negra da plateia pede a fala e admite que o livro a tocou profundamente porque, em várias experiências, precisou criar um, dois, até três personagens para passar por episódios racistas. Era sua tentativa de dissociar.
Seja em um bate-papo em Paris, São Paulo, na marcha em Brasília ou na África, a troca de experiências e a discussão sobre gênero e raça encontram pontos de convergência. Após ouvir o relato, Yala, que parece ter dificuldades em encontrar palavras, embora tenha tanto a dizer, responde: “Estou muito tocada, obrigada!”.
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